A Mãe terra grita por Agroecologia, Da Mãe Terra Esperança e resistência.

quarta-feira, 21 de março de 2012

NAS VEREDAS DO SEGUIMENTO DE JESUS


notas a título de resumo do livro de José Comblin. O Caminho. Ensaio sobre o Seguimento de Jesus. São Paulo: Paulus, 2004. (227 pp.)

Alder Júlio Ferreira Calado



            A mensagem do Evangelho colide, com espantosa freqüência, com a lógica da religião. E esta tem predominado amplamente, também nos dias de hoje. Nos primeiros tempos apostólicos, antes mesmo de a convivência e as práticas dos seguidores e seguidoras de Jesus ainda não serem conhecidas como “cristianismo”, era muito simples a vida, alimentada pelo testemunho da solidariedade, da partilha, do serviço, do espírito missionário. Nunca como nos primeiros séculos, a mensagem do Evangelho se disseminou tanto pelo mundo então conhecido.
Mais um relevante e oportuno ensaio de Comblin! Vem associado a outros dois (A Verdade e A Vida em busca da Liberdade), compondo assim uma trilogia, na perspectiva evangélica como Jesus se autodefine: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.”
            O livro compõe-se de três capítulos (Esperança, Fé e Amor), além do prólogo e da breve conclusão. No prólogo, o autor trata de sublinhar a distinção entre religião e a proposta de Jesus. Distinção de grande relevância e bastante oportuna, pela sua impactante  atualidade. Ao inserir-se na religião de seu tempo, Jesus não hesitou em combatê-la, sempre que conflitava com valores do Projeto de Deus que Ele veio “anunciar e iniciar”, como costumava enfatizar o teólogo Luiz Carlos Araújo. Não foi por acaso que foi perseguido e condenado à morte, e morte de cruz. Embora Ele não vindo para destruir a religião, mas para aperfeiçoá-la, colocando-a em sue lugar, o autor destaca que religião tem a ver com a cultura de um povo, de todos os povos, não necessariamente com a mensagem do Evangelho: “Com o decorrer dos tempos, o cristianismo chegou – em muitos casos – a identificar-se de tal maneira com a religião, que muitos já não percebem a diferença e se acham cristãos simplesmente porque se submetem a todas as prescrições da sua religião. No entanto, alguém pode ser católico rigoroso e ignorar a mensagem e o caminho de Jesus. Pode praticar todos os ritos, aceitar todos os dogmas, obedecer cegamente às normas da instituição e observar a moral, e, ao mesmo tempo, estar fora do caminho de Jesus. O conflito de Jesus com os sacerdotes, os doutores e os fariseus teve por objeto exatamente essa situação ”  (p. 9).
            Na introdução do primeiro capítulo, consagrado à Esperança, Comblin assinala o sentido da Esperança para os cristãos, em diferentes épocas. Nos primeiros tempos do Cristianismo, a Esperança estava ligada à expectativa iminente da segunda vinda de Jesus. Não se tratava de uma Esperança que motivasse especial empenho de mudança já neste mundo. Na Idade Média, em função da teologia eclesiástica dominante, era forte a sensação de que o Reino de Deus já havia chegado, razão por que se tratava apenas de esperar a vinda “do mundo que há de vir”.Tratava-se, então, de defender o Reino que aí estava. A teologia oficial fazia circular o discurso da caridade. Isto implicou, de fato um florescimento de obras de caridade, sobretudo a partir do século XI. “Mas, ao lado desse magnífico desenvolvimento do amor cristão, houve também enorme corrupção – sobretudo porque a maior parte da hierarquia não dava o exemplo dela esperado.”(p. 13). O fato de o discurso oficial priorizar as obras de caridade não impediu, na prática, o envolvimento da instituição com guerras, com a Inquisição, com as cruzadas...Todo um sistema de dominação ao qual se contrapôs, durante séculos, o clamor por reforma. “Porém, o projeto dos reformadores não era a restauração da caridade na justiça para com o povo dos pobres. Os reformadores que defendiam esse projeto (Th. Münzer e outros) foram derrotados. Os que prevaleceram eram clérigos e achavam que o problema básico da cristandade era de tipo doutrinal ou teológico.” (p. 14).
            A cristandade, de um lado, havia feito quase uma fusão entre Igreja e mundo, enquanto a Reforma se equivoca ao fazer uma separação excessiva, por medo de contaminação. Impulsionada por um discurso centrado na fé como única garantia de salvação (o autor classifica o período inaugurado pela Reforma de a “era da fé”), a Reforma vai implicar uma tendência de tipo acentuadamente doutrinal; “Não se preocupou com .a sorte dos pobres e oprimidos deste mundo.” (p. 14). Reação à qual a Contra-Reforma vai reagir, no mesmo tom apologético, contrapondo-se aos protestantes.
            A expansão da cristandade pela América Latina consolidaria tal dualismo, separando corpo e alma, Igreja e mundo, etc. A missão dos eclesiásticos na América era apenas de salvar almas, nada tendo a ver com o sofrimento de povos inteiros: “Os religiosos foram convidados a permanecer nos conventos e os padres nas sacristias.” (p. 16).. E assim permaneceriam, até o século XX, não apenas a Igreja Católica, também as outras Igrejas cristãs, cegamente afeitas à defesa incondicional de suas respectivas doutrinas, reduzindo o Cristianismo a um depósito de verdades, ameaçadas pelo mundo, do qual deviam fugir, enquanto as sociedades modernas começavam a  respirar um clima de emancipação, tanto da Igreja Católica quanto das Igrejas reformadas. (cf. pp. 17-18). .
            Os ventos de emancipação e de progresso, insuflados pela modernidade, suscitariam um esforço de produção teológica alternativa. Foi o caso do extraordinário teólogo Jürgen Moltmann. Calvinista, desencantado com os rumos da teologia então dominante, sobretudo em virtude de sua sisudez e insensibilidade ante os ventos de esperança que a modernidade vinha despertando, tratou de estreitar relação com pensadores da época. Entre eles, o filósofo alemão Ernst Bloch, um marxista heterodoxo que, na época, vinha sendo  perseguido pelos controladores do marxismo ortodoxo, por conta de sua linha de pesquisa, de encantamento com o tema esperança, que ele ia descobrindo a partir de suas próprias leituras do Cristianismo, tal como se percebe em sua obra principal, Princípio Esperança. “O marxismo de Bloch era bastante humanista e dava à subjetividade uma importância que a ortodoxia marxista não podia tolerar.” Foi assim, a partir da contribuição de Bloch, que Moltmann vai empreender uma verdadeira revolução na teologia da época, ao escrever o clássico A Teologia da Esperança. (p. 19).
            Até então, a teologia da esperança ocupava-se mais do indivíduo, sem nada a dezer sobre o mundo, sem diálogo com a modernidade. Predominava amplamente a visão helenizada de mundo, no qual praticamente não havia lugar para a esperança, até porque  o mundo era concebido como algo estático, imutável. Deve-se à contribuição de autores como Moltmann a recuperação da esperança cristã, a recuperação da dimensão escatológica do mundo e da história, sem que isto se reduzisse a uma mera evolução cega das forças produtivas, da simples evolução econômica ou científico-tecnológica, ao estilo do marxismo ortodoxo, visto que “A salvação não vem pela ação de fatores materiais por si só, mas precisa da conversão dos seres humanos.”  (p. 22))..
            Avanços nessa direção não se conseguem tanto por meio da ciência e da tecnologia – embora essas tenham seu lugar na conquista de novos patamares -, mas fundamentalmente pelo apelo dos profetas de ontem e de hoje. Foi sobretudo graças à escatologia bíblica, que se vai dar a ruptura com a teologia helenizada, de expressão escolástica. E esse o caminho que vai reaver o sentido da história na caminhada dos cristãos, permitindo o exercício do diálogo com a modernidade. O  Concílio Vaticano II vai ser um marco nessa direção. Foi essa descoberta da força escatológica de base bíblica – portanto do sentido da esperança -, que permitiu a irrupção da Teologia da Libertação, na América Latina.(pp. 22-23).
            Ocorre que a esperança assume diferentes sentidos, em diferentes regiões e culturas. Na América Latina, por exemplo, dada a situação de povos humilhados, a boa nova desperta a atenção dos pobres e humilhados. Vítimas seculares de sistemas de exploração, de dominação e de marginalização, o Evangelho torna-se boa notícia para os povos vencidos e humilhados. À semelhança do que se passava com os camponeses da Galiléia que Jesus escolheu como seu lugar de predileção, de missão: “Jesus foi para a Galiléia. A opção básica por esse lugar já significava boa-nova, evangelho. Jesus nem precisava falar muito. A escolha do povo da Galiléia para fazer os seus sinais falava por si mesma.” (p. 24)
            Ir para a Galiléia constitui para o autor, com palavras contundentes, a grande referência do caminho de Jesus. Um desafio também para os dias de hoje. Poucos são os que empreendem o caminho da “Galiléia”, como lugar de referência maior da ação evangelizadora: “É urgente ir para a “Galiléia”. Quem faz isso, torna-se sinal de esperança. Qual é o lugar privilegiado dessa esperança? Exatamente essa Galiléia.” (p. 25).
            Nesse tópico (pp. 23-31), o autor se reporta ao sério desafio de se lidar com a esperança dos vencidos, dos humilhados, sublinhando o caso da América Latina. Aqui, os povos indígenas sofreram – e sofrem – uma humilhação multi-secular, expressão e resultado do processo de colonização. Sofreram, não apenas o processo de invasão – por si só, profundamente corrosivo -, mas também a desorganização de sua vida cultural, política, social... E não apenas os povos indígenas: também o povo negro, os camponeses pobres, todos eles, ainda hoje, vivendo à margem, à deriva, junto com seus filhos e filhas – os sem-terra, os sem-teto, os favelados.. Nesse contexto, as classes dominantes também lhes roubam a esperança. Caem no desespero, ameaçados de sucumbirem ao medo, à fuga ou até à adesão aos valores dos setores dominantes.
            Enfrentar cristãmente tal desafio implica ajudar os vencidos a reaverem a esperança; implica vencer a tentação frente ao adesismo, o medo, a fuga, bem como implica vencer a tentação do apego da volta ao passado. Para Comblin, diante da situação de “muitos cristãos que enxergam a sua religião no passado e não imaginam o que poderia significar no futuro. No entanto, o refúgio no passado é uma perda de vitalidade. Afinal a volta ao passado é anticristã. Cristianismo é a caminhada para o futuro, com confiança “.” (pp. 30-31).
            O autor alerta, no tópico seguinte – “Esperança e desejo” –quanto à necessária distinção entre a esperança cristã e uma superficial satisfação de desejos e necessidades que o Mercado excita, numa perspectiva consumista. Esperança tem a ver, sim, com desejos mais fundos, o de dignidade, por exemplo. Dignidade de reconhecimento como gente, de se contar com o respeito à condição da pessoa humana, tem a ver com o lugar que as pessoas sentem ter na sociedade. Não é por acaso que o direito à dignidade tem constituído uma reivindicação comum dos movimentos sociais populares. Só assim sua esperança tem vez. O que implica a necessidade de mudança profunda da forma como a sociedade se acha organizada. Tarefa dos discípulos de Jesus: “O que faz um discípulo de Jesus é acreditar na possiblidade de um mundo novo e trabalhar para que isso aconeça.” (p. 33)
            A esse prpósito, chama especialmente nossa atenção o profético alerta do autor, quanto a identificar essa busca de libertação integral com o Reino de Deus: “Tudo isso é o que no evangelho Jesus chama de Reino de Deus, tornando-se possível a liberdade do homem e da mulher. Reinar é libertar. O Reino de Deus é a libertação do homem oprimido graças à mudança total da sociedade: todos se reconhecem “próximos”. Quem segue a Jesus busca esse Reino e todo o resto vem acréscimo.” (p. 33).
            Eis a marca do Reino de Deus, ante a qual já não faz sentido interpor-se concorrência: “Seria grave erro confundir Reino de Deus com instituição eclesiástica, pedindo, dessa maneira, que os fiéis se preocupem com a instituição. Se assim fosse, não haveria como encontrar um sentido para a esperança.” (Nota da p. 33)
            É também a esperança, e não a mera satisfação de desejos, ao sabor do Mercado, que confere vitalidade aos discípulos e discípulas de Jesus. Não se trata de reprimir desejos, mas de entender estes como correspondentes ao acréscimo recebido pelos discípulos e discípulas do Seguimento de Jesus: “Quem entrou no caminho da esperança, na caminhada do Reino de Deus, não precisa reprimir os desejos porque se sente realizado.” (p. 34).
            Desafio maior se apresenta para os pobres que ainda não se sentiram tocados pela vocação à Liberdade, à medida que se tornam, não raro, presas fáceis do sistema, tornando-se reféns de uma infinidade de desejos que o Mercado propaga, e não lhes sendo acessíveis, tudo fazem para alcançá-los, inclusive sucumbindo ao mundo das drogas. (cf. pp. 33-34). A quem, por outro lado, tem a graça de responder aos apelos do Reino de Deus, “A satisfação dos desejos é dada por acréscimo, mas não pode ser objeto da preocupação primordial. O discípulo recebe essas satisfações sem buscá-las, porque elas estão no caminho. Colhe as flores, mas não faz das flores um comércio ou o objetivo de sua vida. A dinâmica dos desejos é substituída pela dinâmica da esperança.” (p. 35).
            A dinâmica da esperança opera na contramão de dois fortes apelos: a busca de satisfação de desejos, na ótica do Mercado, e, por outro lado, a recusa dos desejos pelo recurso a técnicas individuais em vista do equilíbrio perfeito. Aqui o autor chama a atenção, seja contra o equívoco da chamada teologia da prosperidade (nas igrejas neopentecostais, reformadas ou católicas) , empenhada em satisfazer, pela sobrecarga de emoções e outros procedimentos, desejos imediatos; quanto contra os riscos do equilíbrio perfeito, centrado no indivíduo, indiferente à sorte do mundo.
            Na caminhada rumo à esperança, um outro desafio enfocado pelo autor é a presença do medo (pp. 37-40). Há um clima de medo que percorre o campo e a cidade, apoderando-se das pessoas, deixando-as imobilizadas. Medo da violência, medo da bandidagem, medo da polícia, medo da violência doméstica... Apesar desse tipo de medo, há sinais de enfrentamento. Há sinais de que, apesar disso, pode-se seguir adiante, criando-se coragem para enfrentar esse desafio de cada dia. Há, porém, um medo ainda maior: o medo e existir em meio a uma sociedade de profundas e crescentes desigualdades. Medo de gritar, medo de reivindicar, medo de protestar contra as injustiças sociais, medo de manifestar sua indignação, medo da repressão das forças do Mercado e do Estado. Situação ainda mais complicada, quando se percebe a mudança de posição por parte de quem antes lutava junto com os pobres: “Muitos líderes socialistas cederam aos encantos da burguesia e do capitalismo e já não têm mais condição de lutar por uma socieadade nova..” (p. 38).
            Também para o medo só há remédio na esperança. Os discípulos e discípulas de Jesus sentem-se de tal modo entregues ao Projeto do Reino, que nada temem. Nem a ninguém. Os mártires constituem o exemplo mais emblemático de confiança e de fidelidade ao Evangelho: “Os mártires são sempre os arautos da esperança. Quando os mártires desaparecem, pode-se deduzir que a Igreja perdeu a esperança. Ela já não está mais implicada nas lutas pela libertação humana. Esperar é agir, comprometer-se” (p. 40).
            O ítem quinto do capítulo comporta uma reflexão pertinente sobre a busca da esperança  por meio de processos revolucionários, ou de revoltas populares alimentadas pela utopia. O autor constata o grande número de revoltas populares, por toda a parte. Revolta como reação do povo dos pobres às experiências de exploração, de opressão e de marginalização a que foi submetido pelas elites. As massas chegam ao seu limite, e explodem de indignação, não sem a ajuda de segmentos de seus aliados. Revoltas que devem ser distinguidas de revoluções. Estas assumem um caráter mais duradouro de mudança. Umas e outras não devem ser confundidas com a esperança do Reino de Deus, mas é preciso nelas reconhecer traços em comum. Têm a ver com o Projeto de Deus sempre que consigam implicar mais justiça social, mais solidariedade, mais distribuição das riquezas com o povo dos pobres. Mas, não raro, têm acabado em proveito de minorias à custa de promessas fáceis não cumpridas. E há algo ainda mais complicado: “Pensa-se que a destruição do poder opressor trará a libertação. No entanto,  a esperança diz que a tarefa não é tão fácil, porque, uma vez destruído o poder opressor, chega-se a um desafio mais difícil: como iniciar uma sociedade diferente com os mesmos seres humanos que estavam tão enraizados na situação de opressão?” (p. 43).
            Um alerta relevante por parte do autor diz respeito à complexidade de se pôr em prática um projeto alternativo de sociedade. Não se trata de pretender superar o opressor externo. A relação dominação-submissão constitui algo de que o ser humano se acha impregnado. O fato de se mudar a estrutura econômica e de poder, em determinada sociedade, não implica uma superação automática das relações antes vigentes, até porque os protagonistas de tal mudança também se acham impregnados dos valores antes dominantes. Disto são emblemáticos numerosos casos, inclusive no processo de descolonização dos povos africanos, ou mesmo no caso da Nicarágua, em relação ao qual o autor remete ao depoimento de Fernando Cardenal. (pp. 43-44).
            A esperança ensina que só os pobres são capazes de lutar por mudança. Dos privilegiados não há iniciativa de mudar, antes de manter a situação que lhes é favorável. Os pobres contam com a contribuição também de cristãos. Ocorre que, por vezes, também estes se apegam ao poder, e perdem contato com o povo, a ponto de aproximar-se demais do poder, e já não ter em conta o sofrimetno do povo dos pobres. Até o PT e seus militantes antes mais combativos, perdem força nessa direção, acabam apostando de tal modo nos espaços institucionais do que em sua confiança e proximidade com o povo dos pobres.
            Inadvertidamente, até cristãos críticos se deixam encantar pelo poder, a ponto de já não manter a mesma postura profética de outros tempos. O distanciamento do povo simples leva inevitavelmente alguns cristãos a tal postura. Ao se distanciarem do povo, acabam descomprometendo-se com sua causa libertadora, dela restando-lhes apenas o discurso. Aqui o autor menciona o caso do PT, pelo qual também cristãos se deixaram seduzir: “Houve também cristãos que se deixaram impressionar pelo mito da modernidade, justamente eles que poderiam ter sido mais realistas.” (p. 46).
            De todos os modos, cabe aos cristãos ser fermento dos movimentos sociais populares, mantendo, porém, autonomia. Até propõe alguns critérios de possível colaboração: tratar-se de movimento que aspire a construir uma nova sociedade; que apostem na formação e na mística; o entendimento de que a conquista do povo é mais importante do que a conquista do poder; entre outros. (cf. pp. 47-48).
            A esperança cristã se vive no contexto histórico de incertezas e possibilidades, não de certezas abstratas. A tentação da teologia tradicional, expressa na doutrina social da Igreja, contenta-se com afirmações abstratas, pretensamente universais, a-históricas, sem consideração às particularidades culturais e históricas. Suas postulações dificilmente se aplicam a situações concretas, por se apresentarem como se fossem válidas para todas as culturas. A esperança cristã faz-se atenta aos sinais dos tempos, ao que se passa no campo da história. A esperança cristã é uma história no interior da hlistória da humanidade. A Bíblia, ainda que não seja um livro de história no sentido moderno do conceito, apresenta uma narrativa – a história das promessas de Deus a seu povo, e a esperança desse povo em alcançá-las. (cf. pp. 53-55).
Às vezes, em virtude de tantos reveses sofridos pelo povo, esse mesmo povo inclinava-se ao desânimo e à descrença. Mas, os profetas – mandados por Deus – tornavam a lembrar e a animar o povo sobre a fidelidade de Deus às suas promessas. Também é assim, no Novo Testamento: este também se configura como uma história da esperança do povo dos pobres.
Assim não entendeu a teologia escolástica, expressão da visão estática da hierarquia. Para esta o Reino de Deus já havia alcançado sua plenitude nesta terra, nada mais restando à Igreja e seus membros ficarem à espera passiva da segunda vinda de Jesus. Com isso a teologia escolástica decretava o fim da história, a não ser no que diz respeito ao seu projeto de aumentar seu poderio, com o pretexto de expandir sua ação missionária na América, por meio da conquista. Muitas foram as oportunidades perdidas pela hierarquia da Igreja, de dialogar com outras culturas, dentro do respeito e do mútuo aprendizado. Em vez disto, preferiu enjaular-se em seu próprio mundo, tentando incorporar a si territórios e povos. (cf. pp. 56-61).
            A hierarquia das igrejas cristãs – não atendendo ao apelo da esperança – passaram ao largo, muitas vezes, das realizações históricas: lutas contra a escravidão, contra as opressões de classe, de gênero, de etnia, resultando em conquistas memoráveis, ainda que parciais. Estas se fizeram, quase sempre, sem a participação efetiva das igrejas: “Infelizmente as Igrejas ficaram muitas vezes alheias a essas realizações parciais mas autênticas do Reino de Deus.” (p. 62).
            Curiosa e oportuna a observação do autor, de como, nessas trilhas da esperança - de que são expressões tantas realizações humanas -, se dá a presença do Espírito Santo. Dá-se na ação dos profetas e profetisas que atendem aos apelos do Espírito Santo. Este não muda propriamente os recursos das pessoas que se lançam profeticamente aos desafios, mas potencializa sobremaneira sua ação: “Cada um de nós conhece casos de pessoas que se converteram: eram inertes, indiferentes, passivas e, de repente, movem-se, começam a agir, a promover nova e intensa vida social.” (p. 63).
            A Esperança cristã é peregrina! Vive em caminhada, nas pegadas de Jesus, o Peregrino, aquele que percorria incansavelmente os caminhos da Galiléia, passando por aldeias, vilas, cidades e povoados. O povo dos pobres, do qual Jesus fazia parte, é um povo de “peregrinos e estrangeiros”, como assinala a Carta aos Hebreus (Hb 11, 13). Francisco de Assis bem se aproxima desse ideal de vida. Também era um peregrino, e assim enviava seus irmãos, dois a dois, a peregrinarem. Remetendo a Kajetan Esser, em seu livro Origens e Espírito `Primitivo da Ordem Franciscana (Vozes, 1972: 66-72), Comblin afirma a propósito de Francisco de Assis: “Proibiu que os irmãos tivessem casa e nunca, nos primeiros documentos, aparecem irmãos como guardiões ou ministros encarregados de dirigir uma casa.” (p. 65).
            A história do Cristianismo é marcada pela peregrinação. Antes mesmo do testemunho peregrino de Francisco, já havia a tradição da peregrinação a Santiago de Compostela. E a exemplo dessas, tantas outras experiências de peregrinação. Inclusive as protagonizadas por peregrinos e peregrinas sem rumo definido. Fazer estrada se lhes afirma como um jeito de existir, de ser, de se humanizar. Os peregrinos e as peregrinas seguem as pegadas de Jesus, o peregrino por excelência. Ele vivia passando fazendo o bem, peregrinando por vilas e aldeias. Os peregrinos não estão à procura de receber algo, de possuir, de ter – bens, propriedades, favores... Não é o ter que os motiva. Querem, sim, ser mais humanos, abrir-se aos outros, ver, observar, ouvir, sentir, aprender no e com o caminho. “Caminhando, o peregrino aprende a aproveitar tudo, sem se apegar a nada, torna-se livre, aberto ao mundo e aos outros, menos apegado a si mesmo e mais entregue aos outros. Ele se torna despreocupado e vai adquirindo a qualidade de que fala Jesus quando alude aos lírios do campo. Essa é uma imagem de esperança”. (p. 66)
            Importante para o peregrino, no Seguimento de Jesus, é a persistência, a perseverança. Nas experiências de caminhada, sobrevêm as provações, e a peregrinação pode ser interrompida. O peregrino aspira a ir até o fim, como o fez Jesus. Daí seu pedido, não sendo na direção de bens ou posses, vai no sentido da perseverança. Sabe que não pode garantir isso por suas próprias forças. A esperança tem seus tempos. Esperança para uma hora, para um dia, para uma semana, para um mês, para um ano, para a vida terrena e para além dessa vida. Também, a esperança manifesta-se diversamente a partir das situações concretas da pessoa (de sua cndição econômica, de sua condição étnica, de sua formação, idade, etc. Para quem cultiva os sonhos de ser mais, os sonhos de juventude vão se desenhando na fase adulta e na velhice. Na peregrinação da esperança, também os ritmos dos viandantes são distintos: há os que vão mais à frente, os que têm dificulade de caminhar, os que desanimam por um tempo e depois retomam a peregrinação... (cf. pp. 67-70).
            A esperança nos inspira vivê-la bem no presente, sem sucumbirmos ao “apocalipsismo” que um desvio da esperança cristã: “A vida eterna é o ponto de chegada da peregrinação. Ela procede da peregrinação terrestre, da esperança vivida cada dia nestte mundo. Uma vida de penitência e mortificações é vã: não nos prepara para a vida eterna, mas desvia o verdadeiro sentido da esperança.” (p. 70)
            No último tópico deste capítulo dedicado à esperança, o autor reflete sobre o que tem a ver o profeta com a esperança. “Não há esperança sem profetas. A missão dos profetas é suscitar e alimentar a esperança.” (p. 71). Desde os profetas do Antigo Testamento a Jesus, o Profeta, até os profetas e as profetisas de hoje, sua vocação é de, falando o que o Espírito, lhes comunica, denunciar as injustiças dos poderosos, e de anunciar que outro mundo é possível e necessário. Sua missão é lembrar as promessas feitas, desde a Abraão, sempre que delas o povo vá se esquecendo, seduzido pelos valores de uma cultura. Como sinal do Reino de Deus em marcha, a Igreja cumpre a missão de uma minoria, de uma parcela do Povo de Deus, chamada a ser sinal dos valores desse Reino, razão por que “A Igreja não tem finalidade em si mesma. É um sinal levantado para atrair todas as nações. É um sinal de esperança”. Por essa razão, alerta o autor, â medida em que aparece como um povo ao lado de outros – com tanta especificidade como os outros, gerando uma cultura como os outros -, ela deixa de ser sinal para se confundir com os outros. (...) A Igreja atual cultiva com grande cuidado a sua identidade, a tal ponto que essa preocupação chega a ser patológica em certos momentos (...) Agarrada à sua identidade, a Igreja tounou-se incapaz de falar até mesmo para os povos que já foram cristãos durante séculos.” (pp. 71, 72 e 73).

(Nota: Até aqui, foi contemplado apenas o primeiro capítulo, sobre a Esperança)

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